domingo, 13 de junho de 2010

[Conto] O homem sem coração


Certo dia resolvi dar uma folga ao meu coração. Era um dia quente de verão, ele batia rápido demais, me fazia sentir calor e calafrios ao mesmo tempo, me deixava distraído, e doía o tempo inteiro. Resolvi que ia lhe dar um dia de férias.
Retirei de dentro do meu guarda-roupa uma caixa de madeira, com alguns entalhes vermelhos e uma fechadura dourada, que recebi de um certo alguém, que me disse que aquela era a caixa mais segura desse mundo. Não foi fácil retirá-lo, era pesado demais, cheio de cicatrizes, sangrava um pouco também, e era principalmente muito agitado.
Tranquei-o na caixa,e pus a pequena chave de ouro no meu bolso. Instantâneamente uma sensação incrível de leveza me apossou, era como se não tivesse mais problemas e tudo à minha volta perdesse o sentido.
Porque aqueles porta-retratos ocupando tanto espaço nas paredes e na escrivaninha? E aqueles pôsteres de filmes e músicos? E porque era tudo tão verde e azul?! Lembro-me que costumava dizer que "amava" aquelas cores e músicas e pessoas. Não tinha mais sentido aquilo tudo, era hora de mudar. Juntei tudo numa caixa para jogar fora, ia optimizar aquele espaço. Pra que tanta cor, tanto sorriso? Fiz uma nota mental pra lembrar de mandar pintar tudo de branco.
Enquanto tomava café da manhã minha mãe me ligou. Não sei porque falava com tanto carinho comigo, queria que eu fosse para o aniversário da minha irmã e ainda ao final do telefonema me mandou um beijo e disse que estava com saudade. Me dignei a mandar um "Tudo bem" pra ela antes de desligar.
Saí pra trabalhar, passei na frente da casa da minha ex-namorada, que também era minha vizinha de porta. Havíamos terminado a duas semanas. Antes do elevador se fechar pude ver a porta do apartamento dela se abrindo e um homem saindo de lá com ela, entre beijos e abraços. Não senti nada. Era incrível como algumas horas atrás ficaria devastado, mas naquele momento ela era menos que uma desconhecida para mim. Prossegui meu dia como se nada tivesse acontecido.
Foi o melhor dia da minha vida. Não me importei quando tocou
Your song no rádio (era minha música com minha ex. Era engraçado como eu achava lindo ela chorar assistindo Moulin Rouge, agora eu simplesmente acho-a uma imbecil), muito menos quando me contaram que meu melhor amigo, e colega de trabalho, tinha sido demitido do escritório de publicidade que trabalhávamos (a um dia atrás ficaria o dia inteiro deprimido), e meu chefe me elogiou pela precisão e frieza com a qual raciocinava aquele dia.
Cheguei em casa decidido a não recolocar meu coração. A caixa estava barulhenta e se mexia demais, começou a me incomodar à noite. Resolvi então vendê-lo na internet. Em incríveis dois dias encontrei um comprador. Despachei rapidamente a mercadoria pelo correio.
Meu irmão, em um dia normal (engraçado como todos os dias pareciam normais agora), me fez uma visita. Ele tinha se casado há seis meses, ele veio me dar a notícia de que a mulher dele estava grávida. Esbocei um sorriso respondendo "Que bom". Ele me abraçou com os olhos cheios de lágrimas. Nossa, um abraço tão entediante quanto todos que vinha recebendo ultimamente.
No trabalho meu chefe já dizia que eu estava frio demais, que eu tinha que pôr mais paixão nas criações, e não vendo meu progresso me pôs pra trabalhar na parte administrativa da empresa. Não preciso nem dizer que não fiz nenhum amigo ou avanço por lá.
Aos poucos comecei a me sentir um tanto quanto solitário. Não me importava mais em ver ninguém, há meses não encontrava um amigo ou familiar, e aos poucos todos cansaram de me procurar. Todas as comidas tinham o mesmo gosto, todas as cores eram iguais, todas os filmes,músicas,pessoas, eram entediantes demais. Senti falta de sentir amor por alguma coisa.
Procurei na internet pra quem eu havia vendido meu coração. Era uma mulher, lhe mandei um e-mail e ela respondeu imediatamente com seu endereço, dizendo que tentara entrar em contato comigo durante todo esse tempo. Fazia muito tempo que eu não atendia o telefone.
Fui até a casa dela, ela me recebeu friamente, simplesmente abriu a porta e pediu que eu entrasse. Eu friamente lhe dei um bom dia e entrei. Ela perguntou se eu queria um café, algo, e não insistiu nem se importou quando eu disse não.
A mulher então começou a me insultar, dizendo que eu havia enganado-a, que aquilo não era brincadeira que se fizesse, que devia me processar ou até mandar me matar.
Ouvi tudo e depois perguntei do quê que ela estava falando.
Ela saiu da sala e entrou em outro cômodo.Fiquei sentado me perguntando se devia acompanha-la.Voltou com a caixa com detalhes vermelhos e fechadura dourada. Disse que a chave que eu enviara não era a da caixa. Eu peguei a chave, tinha certeza que era aquela, pequena, de ouro.
Enfiou então a chave na fechadura e realmente não conseguiu abri-la. Eu pedi para tentar, pus a chave lá dentro e a tranca se abriu.
Olhamos surpresos um para o outro, depois para a caixa. O coração estava um pouco roxo e sua batida agora era fraca. Os olhos da mulher brilharam ao ver o coração.
A moça me contou que havia renunciado ao dela depois que seu marido foi assassinado em um assalto, e que nunca havia se arrependido tanto de algo.
Mas eu também queria o coração de volta, sentia falta de beber e me sentir alegre, de ter ímpeto para paquerar uma mulher, de sentir algo ao fazer sexo com uma mulher, de me orgulhar de algo que fiz bem ou de me alegrar com uma notícia boa.
Ela disse que tinha pago, que o coração agora era dela, agarrou-o e colocou em seu peito.
Sua feição modificou-se completamente, ela ficou mais corada, com um sorriso no rosto, os olhos brilhantes.
Ela me olhou nos olhos pela primeira vez, me pediu desculpas, disse que não ia deixar acontecer comigo o mesmo que aconteceu à ela. Mas ela disse que não ia conseguir viver novamente sem amar. E me fez uma oferta: podíamos simplesmente dividir aquele coração.
Provavelmente quem ainda tem um coração e principalmente quem tem alguém pra dividi-lo, deve saber qual foi a minha resposta, e o quanto é maravilhoso o meu mundo depois que eu e ela nos tornamos simplesmente um!

7 comentários:

  1. vey, foi vc q escreveu ?
    putz, ki história linda...

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  2. Muito bom
    Eu tenho um bem parecido vou ver se acho...
    Complementa o seu tem uns 4 anos que escrevi é menor é mais uma poesia fala de um cara que tirou o cérebro...

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  3. JV, acho que vc está estudando p/ a profissão errada. muda que ainda dá tempo, rs. Simplesmente amei o texto.

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  4. fascinante, espero que isso não passou de um conto e que vc não passou por isso. mas se passou que bom que esta dividindo um coração.

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  5. Belíssimo conto!
    Poucas vezes li algo assim.
    Parabéns por ele.

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